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O país do futuro, visto da Argentina


Nueva Sociedad Dezembro 2010

Como o Brasil é percebido por seu vizinho mais próximo? Que imagens projeta? Qual é a percepção sobre seu futuro? A partir da análise das trajetórias históricas, expressões da cultura política de ambos os países e alguns textos significativos, o artigo identifica traços fundamentais do Brasil – a continuidade do Estado, a persistência da desigualdade, a suposta cordialidade de seu povo – que ajudam a entender a imagem do Brasil que prevalece na Argentina, o que, por sua vez, permite definir melhor a ideia que os próprios argentinos têm de seu país.

O país do futuro, visto da Argentina

A expressão «hermanos argentinos» é utilizada com bastante frequência pela imprensa brasileira. Na maioria das vezes, seu uso carrega uma mordaz carga de ambiguidade: se por um lado expressa afeto ou simpatia, por outro deixa claro um ardente desejo de escarnecer os hermanos, ironizando sua idiossincrasia ou colocando o dedo na ferida de seus defeitos. Essas leves provocações envolvem sinais de identidade: quando são mencionados o «mejor negocio del mundo» ou as paixões futebolísticas, são os traços identitários que estão em jogo. Entre eles, a (suposta ou real) arrogância argentina e a sede de reconhecimento daquele esporte. Embora certamente não haja hostilidade nem rechaço nesse modo de aproximação, este reúne, apesar de tudo, uma carga negativa que, ao que tudo indica, está praticamente ausente nas imagens argentinas sobre o Brasil e os brasileiros, que mudaram sensivelmente nos últimos tempos. Durante décadas, era comum que os argentinos olhassem o Brasil por cima do ombro. Velhos preconceitos e sólidas ignorâncias faziam com que, para um argentino que se gabava por viver num país europeu, branco e culto, com uma ampla classe média, o Brasil pudesse ser contemplado com desdém por ser, supostamente, todo o contrário. No entanto, à medida que o Brasil exibe desempenhos econômicos, sociais e políticos considerados bem-sucedidos, ao mesmo tempo em que a Argentina não consegue tirar os pés do pântano de sua decadência, a percepção argentina muda – e isso nos mostra o quanto as percepções recíprocas se relacionam com as percepções de si mesmos.

A frustração argentina se traduz em ressentimento contra o Brasil? Num âmbito popular, no universo da opinião pública, nada indicaria isso. Há muita frustração com a própria Argentina, mas sua contra-cara é até agora uma espécie de inveja saudável em relação ao Brasil. Um dos principais motivos pelos quais a frustração argentina não se traduz em ressentimento é que, claramente, as imagens espontâneas que muitíssimos argentinos têm sobre o Brasil são boas: evocam o futebol, o carnaval, a beleza, a natureza, a música, a alegria, etc. Essas são as primeiras imagens que a palavra «Brasil» costuma suscitar, antes de pobreza, exclusão, violência, etc. E isso cria, no meu entender, um muro que suporta a frustração e não dá base ao ressentimento. Essa sorte de fascinação não é especulativa; assenta-se sobre as coisas boas que, nos últimos anos, o Brasil pode mostrar: protagonismo internacional construtivo, liderança de sucesso de um presidente de origem humilde, reconhecimento internacional, ampliação da classe média e políticas sociais bem-sucedidas, uma economia que enfrentou o temporal da crise financeira melhor que muitas outras, etc.

Um simples exercício exploratório que levei a cabo em 2009 me permitiu confirmar que isso acontece com as percepções de sentido comum. Quando o Brasil foi mencionado, as palavras que apareceram por livre associação foram: abacaxi, açaí, adversário, afro-latinos, alegria, Amazonas, amizade, aviões, baile, bandeira, beleza, bossa-nova, caipiroska, carnaval, coco, continente, desenvolvimento, desigualdade, despreocupação, diversidade, esforço, interessante, Ipanema, favela, feijoada, frondosidade, futebol, futuro, gols, justiça social, Lula, música, negros, Niemeyer, Ordem e Progresso, orgulho, Pelé, praia, pátria, pobreza, português, potência sul-americana, presidente que eu gostaria de ter, próxima potência, projeto de nação, Rio de Janeiro, Romário, samba, saudade, selva verde, trópico, visão, vitalidade, Xuxa. De todas elas, as que se repetiram com maior freqüência foram bossa-nova, carnaval, futebol, Lula, praia e samba. O predomínio de imagens que evocam espontaneamente um Brasil aberto, diverso e múltiplo, uma pletora de atrativos, é impressionante. Os significantes negativos, como pobreza e desigualdade, aparecem muito pouco. A percepção carregada de certa hostilidade (adversário) se manifestou apenas uma vez. Um humorista argentino de enorme sucesso, Peter Capusotto, diz através de um de seus personagens, cantor espanhol com muitos fãs na Argentina: «Que pena não ter nascido no Brasil… se eu fosse argentino, sentiria inveja do Brasil». Capusotto parece acertar com seu sarcasmo.

Ao mesmo tempo, as percepções de grupos profissionais, que por sua atividade têm visões mais específicas, são convergentes, mas a carga positiva em relação ao Brasil é acompanhada de outra negativa em relação à própria Argentina. Assim, por exemplo, o que os jornais repetem é que «o Brasil já decolou... já não tem sentido nos compararmos com eles, são inalcançáveis». Os cientistas políticos costumam invejar saudavelmente aquilo que consideram um sistema político que funciona, com instituições moderadamente sólidas e partidos políticos que parecem ter conseguido se estruturar. Os empresários cultivam a imagem de uma classe política competente e cooperativa, e os sociólogos, a de uma burguesia nacionalista e responsável (uma «senhora burguesia», como costumam dizer, admirados). O prestígio do setor público brasileiro, cujas capacidades de gestão são reconhecidas, não é novo, e o postulado de uma elite política competente completa essa imagem. Outro traço positivo que lhe conferem é a forte continuidade das políticas públicas. Os internacionalistas, por sua vez, sentem profunda admiração pelo Itamaraty, o excelente corpo diplomático brasileiro, e estimam que o Brasil logrou se desempenhar como ator global, em parte graças ao cultivo, de longa data, de uma condição de soft power. Um survey realizado em 2010 com legisladores nacionais indica que, para 80% deles, o Brasil é o país latino-americano que a Argentina deveria imitar por seu desempenho político, econômico e institucional (o Chile fica em segundo lugar, com 75%, e o Uruguai em terceiro, com 55%).

Essas percepções se aproximam das que o próprio ensaísmo brasileiro, em algumas ocasiões, conseguiu forjar de modo perdurável sobre o Brasil e o modo de ser de seu povo. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda, que proclama «a doçura de nosso gênio»1. Ainda mais contundente é a transformação sofrida ao longo do tempo, e sua consolidação no senso comum, da expressão «homem cordial», consagrada por Buarque de Holanda, que perdeu sua conotação crítica e passou a carregar o significado corriqueiro: o brasileiro como uma pessoa cordial. E o mesmo pode-se dizer do caráter brasileiro projetado por Gilberto Freyre2: a passagem do tempo apagou-lhe os contrastes, e costuma-se acreditar que Freyre pintou um Brasil escravocrata idealizado. O resultado é que a imagem distorcida da pintura de Freyre de algum modo impregna as visões brasileiras sobre o Brasil.

Mas talvez seja ainda mais interessante a trajetória do sintagma «complexo de vira-lata», criado na década de 1950 e destinado a escarnecer um hipotético complexo de inferioridade no caráter nacional brasileiro. Um cão vira-lata é um cão qualquer, de raça indefinida, obrigado a virar cestas de lixo na rua para se alimentar. A expressão tem uma inocultável conotação racista (embora não tenha sido essa a intenção de seu autor, Nelson Rodrigues): no concerto mundial, o Brasil destoaria devido à mistura e ao componente de raças inferiores, e o brasileiro levaria esse complexo como um traço de sua identidade. A postulação de um sentimento brasileiro de inferioridade não era algo novo, como nos mostra Buarque de Holanda em seu clássico Raízes do Brasil:

Quando se fez a propaganda republicana, julgou-se introduzir, com o novo regime, um sistema mais de acordo com as supostas aspirações da nacionalidade: o país viveria finalmente por si, sem precisar exibir, só na América, formas políticas caprichosas e antiquadas; na realidade, porém, foi ainda um incitamento negador o que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novo rumo, porque «se envergonhava» de si mesmo, de sua realidade biológica. Aqueles que pugnaram por uma vida nova representavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a idéia de que o país não pode crescer por suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros.3

O certo é que o tropo canino complexo de vira-lata prestou-se muito bem a conferir visibilidade a esse suposto sentimento de inferioridade. Para Rodrigues, o brasileiro se colocava, voluntariamente, em situação de desvantagem frente ao resto do mundo: «o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima»4. Como se pode ver, a ambiguidade reside no próprio autor: segundo ele, o complexo de inferioridade é injustificado ou tem fundamento? Essa ambiguidade é o ponto em destaque, indicativo de uma baixa auto-estima. De algum modo, essa ambiguidade responde pelo que as próprias elites brasileiras imprimiram na imagem do Brasil durante décadas. Porque a falta de confiança – de origem racista ou não – na sociedade brasileira coexistia, de forma incômoda, com uma plena confiança em um Brasil destinado à grandeza. E tal confiança se sustentava, mais que na sociedade, no Estado. Em certa medida, o pessimismo social das elites e seu otimismo estatal eram os dois lados da mesma moeda: o Brasil não podia ser o país do presente, mas podia ser o país do futuro.

Já a grandeza e a excepcionalidade argentinas têm origens que remontam à formação do Estado no século XIX. Quando a elite liberal se ocupou de «hacer a los argentinos (fazer os argentinos)», para usar uma expressão de Luis Alberto Romero, suas melhores cabeças não encontraram nenhuma dificuldade em plasmar o mito. Assim, por exemplo, Bartolomé Mitre decidia que os episódios de maio de 1810 haviam constituído uma revolução e, ao mesmo tempo, que essa revolução era excepcional por carecer dos traços que costumam ser inerentes às revoluções:

Essa atitude digna e moderada dos patriotas em 1810 [não ter derramado sangue] é a que imprimiu à Revolução de Maio esse carimbo de grandeza que a distingue de todas as demais revoluções. Executada sem baionetas e sem violência, apenas pela força da opinião; triunfante por sua razão no terreno da lei e da conveniência política, sem aparato de tropas, sem perseguições, o povo se libertou com dignidade, assumindo sua atitude de soberano com uma segurança e uma moderação como pouco se vê na história.5

Entre 1880 e 1930, a grandeza argentina foi um ato de fé. O país havia sido escolhido pelos deuses. No entanto, em meados dos anos 1950 (época em que o brasileiro Nelson Rodrigues cunhava a expressão «complexo de vira-lata»), a Argentina começou a tropeçar em sua própria auto-estima. Fazia já duas décadas que haviam sido escritos e consagrados ensaios como Radiografía de la pampa (1933), de Ezequiel Martínez Estrada6, que nos afundavam numa sociedade inescapável e num mundo onde cada esforço estava condenado a nos distanciar ainda mais de qualquer redenção. Imagens desse tipo ainda não faziam estrago nas noções do argentino comum sobre a Argentina. Entretanto, a crise de 1929, a fratura institucional, as dificuldades de inserção no mundo e a turbulenta emergência de uma Argentina social até então desconhecida já formavam um problemático pano de fundo, muito diferente daquele dos «anos dourados». Com esse cenário, a elevada auto-estima, fundada nos pilares de nossa suposta condição de país europeu, branco, culto, rico, de classe média, começava a se comover, mas se mantinha de pé, embora já convivesse com algum desconcerto e até com certa irritação com o mundo, do qual nos sentíamos vítimas e o qual repreendíamos por não reconhecer nosso real valor.

No Brasil, lentamente o «complexo de vira-lata» foi se desagregando. Para isso, contribuíram o árduo e sempre parcial triunfo da pluralidade social e a ausência de preconceitos raciais como auto-imagem da sociedade (auto-imagem que coexistia com um velado preconceito, como destaca Florestan Fernandes7), além da elaboração de um país aberto, pujante, do futuro, uma sorte de bel paese tropical, como imagem internacional da nação. Certamente, o aumento da auto-estima teve altos e baixos. Basta recordar a eclosão de otimismo que acompanhou a aprovação da Constituição Cidadã de 1988, assim como o desânimo dos anos seguintes até o Plano Real de 1994. Ainda em 1997, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor podia satirizar o sempiterno caráter nacional brasileiro: «Seculares fisiológicos, patrimonialistas, escrotinhos, arrogantes, malandrinhos, ignorantes, megalôs, só nos resta pensar: o que falta desaprendermos para chegarmos a uma ideia de país? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão? Quantas décadas levaremos para desaprender todas as bobagens que cultivamos há 400 anos?»8. Mas, não muito depois, o próprio Jabor podia deixar para trás as reflexões ensimesmadas para celebrar um «crescimento, depois do Plano Real, que colocou-nos como emergentes, cheios de futuro»9.

De fato, os altos e baixos não impediram que a auto-estima se consolidasse, nem que se projetasse como uma imagem notavelmente consistente com aquela que os não brasileiros têm sobre o Brasil. E, além disso, bem sustentada com o papel brasileiro no mundo, a respeito do qual a consistência também é alta. O «destino de grandeza», que as elites formularam como uma promessa desde os tempos do Barão do Rio Branco, começou a parecer ao alcance da mão.

Em meio a essa trajetória havia prosperado, e logo murchou, uma nova metáfora do Brasil: «Belíndia». Criada pelo economista Edmar Bacha – a sociedade brasileira estaria fragmentada entre uma classe alta análoga à belga e massas tão miseráveis como as indianas –, Belíndia teve um imenso sucesso na batalha de opinião contra a ditadura militar (era preciso demonstrar que, com o regime autoritário, o país gerava riqueza mas concentrava renda, e assim se contrapunha ao Brasil potência) e perdurou nos anos de pessimismo da década de 1980. Se o país se via afetado por tão graves problemas sociais, como se podia pensar em uma ascensão do Brasil? O arremate foi feito por Fernando Henrique Cardoso quando, logo após assumir a presidência, declarou: «O Brasil não é um país subdesenvolvido; é um país injusto»10. Mas essa conclusão foi, ao mesmo tempo, o anúncio de uma virada nos desempenhos e, sobretudo, nas percepções. Não resta dúvida de que, já bem iniciado o século XXI, a sociedade brasileira continua sendo injusta; mas tampouco resta dúvida de que as percepções mudaram profundamente. É certo que há fatos nesse contexto, entre eles a estabilidade econômica e política, a queda pronunciada da pobreza, o crescimento fenomenal da classe média e o véu cada vez mais espesso com que se cobre o preconceito racial. No entanto, eles por si sós não conseguem explicar uma mutação tão marcada nas auto-percepções. Marco Aurélio Garcia, assessor de Luiz Inácio Lula da Silva para as relações internacionais e membro histórico do Partido dos Trabalhadores (PT), justificou por exemplo a política de ajuda econômica a países vizinhos com o seguinte argumento: «É claro que agora existe uma solidariedade maior do Brasil com os vizinhos. Não queremos que o país seja uma ilha de prosperidade em meio a um bando de miseráveis. Temos que ajudá-los, sim»11. É como se grande parte das elites brasileiras tivesse guardado durante anos a promessa do «país do futuro» para exibi-la aos primeiros sinais prometedores, talvez rápido demais.

Enquanto isso, na Argentina do começo dos anos 1970, ocorreu um terrível ponto de inflexão, numa espiral de declínio que comoveu severamente os arraigados sentimentos de superioridade (no contexto regional e até mundial) dos argentinos. Desde então, a queda da auto-estima conviveu com uma relação sempre tensa, e às vezes traumática, com o mundo. A baixa auto-estima argentina jamais se pareceu com a brasileira porque tem como traços específicos um passado de «grandeza» e um desalento sobre o porvir coletivo (ao passo que o Brasil não recorda um passado assim e é «o país do futuro»). A violência política, o terror de estado, a guerra externa, as crises econômicas e o deterioro social foram pontuando a decadência que, longe de pender suave e regularmente, está marcada por convulsões. E por sucessivos momentos de respiro, nos quais a auto-estima se eleva acima do horizonte de cada crise.

A experimentação da decadência se transformará numa vivência decadentista, na qual a história argentina será percebida como contendo um núcleo, uma causa eficiente do declínio: um momento crítico – que vai variar segundo as preferências – a partir do qual a Argentina teria perdido o rumo. Observemos que não há nada igual na percepção histórica brasileira. A Argentina acumulou, ao compasso de sua turbulenta história política e social, uma série de passados dourados, aqueles em que cada setor se encontrava mais cômodo – e a ruptura com esse passado é o momento da perda de rumo nacional. Além disso, foram se acumulando experiências históricas nas quais acreditou-se que era possível trazer de volta o curso dos acontecimentos – o governo peronista de 1973 e a ditadura militar de 1976 são bons exemplos – à época dourada, ao ponto anterior à suposta perda de rumo.

E foi assim como a imagem que os argentinos têm de si mesmos deixou para trás a elevada auto-estima e a irritação com o mundo para dar lugar a um desassossegado desconcerto. A admissão de que não podemos viajar de volta no tempo e de que a Argentina real é muito diferente da Argentina «europeia», do pleno emprego, da educação vigorosa (como evoca Beatriz Sarlo), naquela que acreditávamos viver, não desembocou ainda numa imagem assentada, equilibrada, e sim em altos e baixos entre euforias e desalentos pouco duradouros.

Mas por que, segundo os próprios brasileiros, o Brasil ostenta uma trajetória de ascensão econômica e social que apontou a notória melhora na imagem que os cidadãos têm de si mesmos como comunidade? Acredito que não me equivocarei muito se afirmar que os brasileiros atribuem sua boa estrela a dois fatores marcadamente idiossincráticos: a continuidade estatal e a concórdia social.

A continuidade do Estado brasileiro é um fato incontrastável: remonta-se aos tempos da Colônia, sobretudo devido ao impacto político, burocrático e institucional que teve a transferência da Coroa portuguesa para o Brasil, em 1808. Concretizada a Independência em 1822 (basicamente por um acordo dinástico), o Império, e especialmente o longo reinado de Pedro II (quase meio século entre 1841 e 1889), presumiram o arranjo do Estado com um regime político dotado de uma grande legitimidade (que foi perdendo pouco a pouco e que teve a energia suficiente para sustentar a Guerra da Tríplice Aliança e, em seu ocaso, completar a gradual liquidação da escravidão). Não é exagerado afirmar que, no Brasil, o Estado antecedeu a nação (ao contrário da Argentina), e em grande medida fez a sociedade (como também ocorreu na Argentina). Esta seria, segundo Raymundo Faoro, a origem do patrimonialismo brasileiro, que gravitaria até hoje em seu desenvolvimento econômico e social. 12 Os pontos altos da história brasileira são, quase todos, iniciativas surgidas no mundo das elites estatais e do pessoal político conexo. Daí a presunção de que o desenvolvimento da sociedade brasileira teria um sólido ponto de equilíbrio no Estado: embora este às vezes a amassasse com seu peso, teria lhe dado forma e estabilidade ao longo do tempo. Foi abrindo o caminho de uma modernização lenta, gradual, para muitos conservadora, mas modernização enfim. A harmonia social e política brasileira constitui um mito poderoso de profundas raízes e vigor no Brasil contemporâneo. Talvez a leitura dominante de Casa-Grande e Senzala, a obra monumental em que o antropólogo Gilberto Freyre destrincha a família patriarcal, escravista, polígama do monocultivo latifundiário nordestino, seja uma boa ilustração. Porque, para além da fascinante e intensamente ambígua análise do próprio Freyre, pareceria, segundo muitos intérpretes da obra, que este teria pintado o quadro de um paternalismo, abusivo como tal, mas no fundo benfeitor. O mesmo homem cordial que Buarque de Holanda coloca em primeiro plano em Raízes do Brasil, incapaz de distinguir em seu pensamento ou em seus atos os laços primários dos laços públicos, evoca um conjunto social onde os conflitos de interesse ou de classe seriam sempre temperados por mecanismos transversais de todo tipo. Do mesmo modo, domina a convicção de que, facilitada talvez por esses traços conciliatórios da sociedade brasileira, sua política seria eminentemente uma política de composição, na qual a negociação predomina sobre o enfrentamento. «Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica»13, sustentava Joaquim Machado de Assis en 1859, numa sentença inconcebível para a Argentina, não pela ausência entre nós de uma «potência monárquica», mas porque tal conciliação de princípios era-nos alheia.

Atualmente, as leituras sobre a sociedade brasileira no marco da harmonia social podem ser encontradas nos debates de maior relevância, como aquele sobre a pertinência de políticas de discriminação positiva por «raça» ou cor. O destacado jornalista Ali Kamel, por exemplo, critica duramente essas políticas, entre outros motivos porque poderão «ser um estímulo para o surgimento de rancores em grupos e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até aqui… (…) nós, brasileiros, conseguimos construir um país que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade: a inexistência de ódio racial. Isso não é sorte. É fruto da construção de gerações que experimentaram sempre a tolerância»14.

Gerações que experimentaram sempre a tolerância. Em agosto de 1936, Stefan Zweig, ensaísta e romancista tão prolífico como talentoso e popular, chega pela primeira vez ao Brasil. Está de viagem pela América do Sul, já extremamente preocupado pela tormenta que se anuncia na Europa e talvez no mundo inteiro. Ao estourar a guerra, ele se traslada a Paris para não retornar mais a Viena. Depois de idas e vindas entre a Europa e a América do Sul, já instalado no Rio de Janeiro, em 1941 ele publica Brasil, um país do futuro, um pequeno ensaio que foi reeditado várias vezes (embora sua tradução ao espanhol tenha contado com edições ainda mais numerosas em Buenos Aires). Os anos parecem ter coberto o ensaio de Zweig com uma pátina de ingenuidade, mas atrás dela se escondem algumas intuições extremamente sagazes. Durante muito tempo, a obrinha não deixou de ser considerada, com desdém, como uma grande metáfora do jeito brasileiro de fracassar («promessa perpétua, futuro que nunca vem, estúpido curtir da esperança como negação da dolorosa realidade» seriam os lugares-comuns próprios desse jeito). Pode-se perceber melhor o valor do ensaio do vienense no contexto de sua belíssima autobiografia, O mundo de ontem. Memórias de um europeu15, escrita pouco depois de Brasil, um país do futuro e, portanto, pouco antes de seu suicídio com Lotte, sua mulher, em Petrópolis.

Lendo essas estremecedoras memórias, pode-se compreender claramente como o equilíbrio emocional de Zweig foi se desmoronando à medida que o encantado mundo europeu da virada dos séculos se despedaçava nos cinco lustros que transcorrem entre 1914 e 1939, vítima dos monstros gerados pelos sonhos da razão dos próprios europeus: o nacionalismo, a luta de classes e o racismo. Quando Zweig – já atormentado pelo que julga como inevitável queda de seu mundo e tentado, portanto, como costuma acontecer nesses casos, a deixar levar sua mente e seu coração rumo a um passado que não pode mais que ser mitificado – chega pela primeira vez ao Brasil, ele descobre, deslumbrado, um éden do futuro porque, segundo o que vê, está se realizando rapidamente, e tanto é assim que seus gratos traços podem ser apreciados em seu presente.

No entanto, porque o Brasil de 1936, o Brasil que ainda não havia deixado para trás as úlceras da Velha República e batia à porta do Estado Novo, pode ser visto (numa miragem, para muitos leitores) como um país dos sonhos, não dos pesadelos, do futuro? Porque o Brasil que Zweig acredita ver é, justamente, uma sociedade livre dos monstros dos quais ele próprio tentou inutilmente fugir (creio que seu suicídio não se explica porque a sociedade brasileira desiludiu Zweig, e sim por aquilo que acontece com tantos perseguidos que não podem suportar vivos a morte de seus próprios mundos sociais, culturais e até familiares). De fato, Zweig não percebe o nacionalismo no Brasil, e sim um orgulho nacional pacífico, acompanhado de auto-confiança, nada xenófobo nem agressivo. Um país satisfeito com suas fronteiras e livre de redentorismo territorialista. Tampouco a luta de classes faz parte do panorama social brasileiro que Zweig observa. O Brasil é uma sociedade de contrastes, mas esses contrastes parecem estar presididos por certo espírito de harmonia, por uma bonomia natural, uma predisposição para a integração e não para a contraposição social. Por fim, no que concerne ao pior dos pesadelos que atormentava Zweig, o racismo, não lhe faltam motivações subjetivas para encontrar o Brasil decididamente paradisíaco. Vê no país uma sociedade multirracial, sem ódios recíprocos nem discriminações de raça ou cor. Note-se que a leitura que Zweig faz poderia estar condicionada por acontecimentos nada aprazíveis, que o teriam levado a conclusões muito distintas: a Intentona Comunista de 1935, o integralismo fascista de Plínio Salgado e o nacionalismo que se projeta com a ascensão de Getúlio Vargas no firmamento da política brasileira; tudo isso servia bem para a pintura de um quadro muito diferente sobre a luta de classes, o racismo e o nacionalismo no país.

No entanto, se colocamos o quadro de Zweig em perspectiva histórica e o contemplamos em nossos dias, creio que seu valor se realça e duvido que uma interpretação alternativa pudesse ter vigência atualmente. O que esse ensaio de 1936 tem em comum com o Brasil de hoje? Creio que o Brasil de hoje é aquele vislumbrado por Zweig muito mais do que parece à primeira vista. Algumas comparações podem nos ajudar a discutir o ponto: de imediato, o nacionalismo brasileiro parece menos tóxico que seu irmão argentino. O nacionalismo argentino é atormentado, sombrio, uma flor cultivada no fértil terreno da vivência decadentista, e leva uma gota amarga de ressentimento. É um nacionalismo que pode, para lançar mão de um exemplo recente, dar licença para a reação crispada (do governo e de uma parte da sociedade argentina) perante o Uruguai no conflito sobre as «papeleras» em Fray Bentos (reação que contrasta de modo patente com aquela do governo brasileiro na disputa com a Bolívia sobre a Petrobras – embora não tenham faltado intelectuais que flamejaram a bandeira da dignidade nacional. E não tiveram, ainda bem, a repercussão nem social nem oficial que eles esperavam). É evidente que os exercícios de recuperação da auto-estima nos quais sucessivos presidentes acreditam necessário ingressar – ou incorrer, não é momento de discutir isso, mas sim de observar que FHC e Lula têm apresentado uma perfeita continuidade neste ponto – levam em si uma certa empolgação nacionalista, mas isso tem um tanto de festivo e, sobretudo, não tem a típica indignação argentina contra o mundo (puxa – pergunta-se Lula – como é que nós, brasileiros, podemos ter do Brasil uma visão muito mais negativa que a de fora?).

E a luta de classes? Outra vez na perspectiva comparada, dá para ver que a conflitividade social tem sido, ao longo do século XX, bem menor no Brasil que nos outros países do Cone Sul com os quais a comparação poderia fazer algum sentido. Embora o Brasil tenha fundado um partido trabalhista de novo cunho, o componente de luta social inter-classes tem relevância explicativa maior na história argentina, chilena ou uruguaia. Deixo para o leitor tirar suas conclusões no que tange à positividade ou negatividade deste traço social, mas parece-me claro que o imaginário social brasileiro, mais hierárquico e menos plebeu que, por exemplo, o argentino, continua sendo de integração mais que de contraposição.

No que se refere ao racismo, penso que a comparação com uma sociedade como a americana, semelhante em mais de um sentido à brasileira, é proveitosa. Porque a pluralidade brasileira coexiste, por certo, com o preconceito, mas em ambos os planos a diferença em relação aos Estados Unidos é marcada: ali, onde a one drop rule [«regra de uma gota», segundo a qual qualquer americano que tivesse certo grau de ascendência africana – até mesmo uma gota de sangue – era considerado negro e inferior] imperou e ainda impera culturalmente, os direitos republicanos coexistiram (muito mais, diga-se de passagem, em vários estados da União) com um denso racismo cultural e um nítido distanciamento das «raças».

Feitas as contas, justifica-se plenamente a recente exumação da desdenhada sepultura do ensaio de Zweig (reeditado recentemente tanto no Brasil como na Argentina)16. Em grande medida, o Brasil que ele imaginou é o Brasil que vivemos hoje. O fato de que tenha passado tão despercebido que o vienense acertara na mosca em 1941 é expressivo de problemas que a sociedade brasileira tem – como toda sociedade dinâmica contemporânea – para conhecer a si mesma. No entanto, como os brasileiros representam essas e outras questões de sua própria sociedade? Quero ressaltar um elemento: a forte ambiguidade que cada tema conota. Longe de imagens preponderantes ou de fortes contrastes, o que encontramos são matizes de imagens não totalmente definidas. É o caso da questão racial. A auto-representação do Brasil como paraíso da miscigenação, onde o cruzamento inter-racial coexiste com a diversidade étnica sem ingredientes de racismo é, não restam dúvidas, um mito potente. Tanto é assim que aqueles que, com muito boas razões, começaram a sitiar essa fortaleza magnífica, precisaram encontrar trajetos oblíquos de ataque. É o caso de Florestan Fernandes, que, a meados dos anos 1960, refere-se ao «preconceito de não ter preconceito»17, como que expressando uma ambiguidade profunda entre a dimensão axiológica e as práticas cotidianas.

O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante do «preconceito de cor» é a tendência a considerá-lo algo ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para quem o pratique). (...) Tudo se passa como se o «branco» assumisse maior consciência parcial de sua responsabilidade na degradação do «negro» e do «mulato» como pessoa, mas, ao mesmo tempo, encontrasse sérias dificuldades em vencer-se a si próprio e não recebesse nenhum incentivo bastante forte para obrigar-se a converter em realidade o ideal de fraternidade.»18

Assim, os brasileiros aparecem como não sendo racistas, mas tampouco liberados do preconceito racial.

Mas talvez nada ilustre melhor as vigorosas ambiguidades das percepções do Brasil sobre si mesmo que o diálogo (virtual, evidentemente) entre o eminente antropólogo Gilberto Freyre e o sociólogo e estadista Fernando Henrique Cardoso. De fato, no prólogo da mais recente edição de Casa-Grande e Senzala, Cardoso critica de maneira benevolente a obra de Freyre, apontando, entre seus aspectos vulneráveis, «suas confusões entre raça e cultura, seu ecletismo metodológico, o quase embuste do mito da democracia racial, a ausência de conflitos entre as classes ou inclusive a ‘ideologia da cultura brasileira’ baseada na plasticidade e no hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos». Entretanto, na hora de concluir sua avaliação a respeito do legado de Freyre globalmente considerado, Cardoso recupera, relativizadas, as teses mais indicativas do pensamento do antropólogo:

De alguma maneira, Gilberto Freyre nos leva a fazer as pazes com o que somos. Valorizou o negro. Chamou a atenção para a região. Reinterpretou a raça pela cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais força que todos, que a mestiçagem, o hibridismo e inclusive (mistificação à parte) a plasticidade cultural da convivência entre contrários não são apenas uma característica, e sim uma vantagem do Brasil.19

O aumento da auto-estima brasileira não podia estar desprovido de vozes significantes. E talvez uma das mais expressivas, e ao mesmo tempo ilustrativa das ambiguidades que as imagens brasileiras carregam sobre o Brasil, seja a da miscigenação, à qual me permito opor a figura hispano-americana do «crisol de razas» (algo como «leque» ou «caldeirão» de raças). São expressões próximas: ambas aludem a mistura, fusão, cruzamento de «raças» (seja qual for o que o elusivo termo «raças» queira significar) e etnias. Mas são semanticamente opostas: enquanto o significante «miscigenação» constitui uma imagem plural e diversa da sociedade brasileira, o significante «crisol de razas» nos propõe uma imagem homogênea (branca) da sociedade argentina. Mas os dois conceitos têm sua história.

Durante o século XIX e parte do XX, o termo brasileiro estava fortemente associado à ideia de embranquecimento racial. Já na década de 1920, o conceito racista de embranquecimento foi se erodindo de distintas formas. O conceito de mestiçagem o deixaria num plano secundário e, por exemplo, era difícil manter de pé o embranquecimento junto à ideia de antropofagia cultural de Oswald de Andrade e ao manifesto modernista. Mas foi apenas nos anos 1930 – década que registra uma autêntica virada na história política e cultural brasileira – que a noção de miscigenação se distanciaria definitivamente da de embranquecimento. Ela se consolidaria como um conceito ao mesmo tempo biológico e cultural, pois expressaria tanto o entrecruzamento de «raças» ou de etnias como de culturas.

Como explica Ricardo Benzaquen de Araújo, Gilberto Freyre ambiciona, com Casa Grande e Senzala, «tornar-se o autor do primeiro grande trabalho de cunho sociológico que consiga romper com o racismo que caracterizava boa parte da produção erudita sobre o assunto até 1944»20. «Diferença, hibridismo, ambiguidade e indefinição: parecem ser essas as principais consequências da ideia de miscigenação»21, observa Benzaquen. Mas essa nova noção de miscigenação centrada na pluralidade e no equilíbrio de contrários é, no meu modo de ver, construída por Freyre, que para poder fundá-la deve potencializar os setores subordinados. Deve equiparar, digamos assim, a senzala com a casa-grande. Por isso, grande parte do esforço de Casa-Grande e Senzala estará destinada a precisar o impacto da presença física e cultural de índios e negros na sociedade e na cultura brasileiras.

E o eco das chaves de leitura de Freyre pode ser escutado até hoje, por exemplo, nos termos do debate sobre a política de cotas e a discriminação racial. Entre as principais posições contrárias à política de cotas, Ali Kamel sustenta que ela traz ao Brasil o perigo de constituir uma nação bicolor (ou seja, aquela onde os brasileiros se percebam taxativamente como brancos ou negros): «a adoção das cotas raciais só é possível se antes toma corpo todo um proceso que substitui o ideal de nação miscigenada e tolerante pela crença em uma nação dividida entre negros oprimidos e brancos opressores»22.

Além disso, Kamel critica os que alentam uma visão multiétnica do Brasil, dado que nas nações multiétnicas, assevera, embora a discriminação seja censurada, a mescla é evitada como antinatural. Tudo isso sugere a percepção do Brasil como uma sociedade onde a diversidade da mescla e do sincretismo, e não a de contingentes sociais, étnicos e culturais estancados, é dominante. Definir os brasileiros pela «raça» (política de auto-classificação que tem sido proposta) seria «o fim do país que se orgulhava de sua miscigenação, que sabia que ninguém é inteiramente branco ou inteiramente negro, que tinha orgulho de seu largo gradiente de cores»23.

É interessante observar que as palavras de Kamel têm ressonância com as do Conselho Federal de Cultura do Estado Novo (organismo do qual participou Gilberto Freyre) que se referiam à cultura brasileira como plural e variada, e ao Brasil como um continente arquipélago em sua pluralidade étnica, cultural e física24. Porque se os adversários de Freyre eram os defensores da tese do embranquecimento, os de Kamel são partidários de uma clara separação segundo critérios – necessariamente artificiais – de raça e cor. Atualmente, esse debate está no centro de uma batalha cultural pelas percepções da sociedade brasileira.

A noção de «crisol de razas» também tem sua genealogia. Bartolomé Mitre, em sua Historia de Belgrano, embora sem utilizar a expressão, apresenta-nos uma perspectiva consonante da origem da formação social rio-platense.

Três raças participaram da gênese física e moral da sociabilidade do Prata: a europeia ou caucasiana como parte ativa, a indígena ou americana como auxiliar e a etiópica como complemento. De sua fusão resultou esse tipo regional, em que o sangue europeu tem prevalecido por sua superioridade, regenerando-se constantemente pela imigração, e de cujo lado tem crescido, melhorando-se essa outra raça mista do negro e do branco, que assimilou as qualidades físicas e morais da raça superior.

Mitre é por certo tributário das concepções racistas então imperantes, mas o que tem de interessante seu relato é que as «raças inferiores» negra e indígena são reconhecidas, fazem parte do processo de fusão. Essa pluralidade não se sustentaria por muito tempo.

A expressão «crisol de razas» se consagrou com a grande imigração europeia a partir do final do século XIX (certamente, não é exclusiva da Argentina, e a expressão inglesa equivalente, melting pot, «panela de fundição», tem sido muito utilizada) e com as políticas do Estado liberal argentino destinadas a nacionalizar as massas de imigrantes. Como significante, carrega um sentido marcadamente homogeneizador – alude ao processo pelo qual as «raças» muito diversas entrariam no caldeirão, para assim formar uma «raça argentina». Mas a diversidade «racial» associada a essa mistura não é completa: os grupos étnicos indígenas e negros ficam sem papel algum, assim como não o têm os imigrantes de países limítrofes. A «raça» argentina misturada deve ser necessariamente branca (o que acarreta uma tendência de deixar de fora do argentino aqueles que não são brancos). Mas, se a heterogeneidade étnica da sociedade argentina é levada em conta, tanto historicamente como na atualidade25, saltam aos olhos duas coisas. O sucesso com que o Estado liberal conseguiu implantar a imagem – que se relaciona com seus muito vigorosos esforços destinados à tarefa nacionalizadora, temerosas as elites de perder o controle sobre uma população indígena estrangeira numerosíssima – faz com que essa imagem se encontre ainda arraigada no senso comum, embora fortemente questionada pelos estudiosos. E na medida em que a expressão ainda tem vigência, a Argentina dispõe de uma imagem de si mesma que não é – nunca foi – congruente com sua diversidade. Existe, portanto, certa violência cultural e simbólica que se mantém apesar de que o caldeirão esteja visivelmente quebrado.

Assim, temos duas imagens predominantes com as quais o Brasil e a Argentina têm representado a si mesmos, em forte contraste. Ambas são, vale agregar, diferentes da que expressa uma figura como «mosaico de raças», da qual o multiculturalismo está mais próximo – segundo a metáfora do mosaico, a pluralidade estaria dada pela coexistência de grupos étnicos que interagem pouco entre si. Pelo contrário, tanto o «crisol de razas» como a miscigenação evocam processos de mistura; no primeiro, contudo, o movimento é do heterogêneo ao homogêneo, ao passo que no segundo a heterogeneidade é percebida positivamente. O curioso é que, enquanto na Argentina o império dessa imagem parece estar em retrocesso (embora não tenhamos ainda uma expressão alternativa), questionada em diversos campos científicos, culturais e políticos, no Brasil a miscigenação está sendo colocada em xeque a partir de grupos que propõem combater o racismo mediante políticas públicas consistentes em reagrupar simbólica e praticamente a diversidade sociocultural em duas «raças», branca e negra.

  • 1. Raízes do Brasil, ufmg, Belo Horizonte, 1997.
  • 2. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal [1933], Global, São Paulo, 2008.
  • 3. Em todos os casos, o grifo é do autor.
  • 4. Em revistapesquisa.fapesp.br/.
  • 5. B. Mitre: Historia de Belgrano y de la independencia argentina [1857], Losada, Buenos Aires, 1965.
  • 6. Radiografía de la pampa, Losada, Buenos Aires, 1997.
  • 7. O negro no mundo dos brancos, Difel, São Paulo, 1972.
  • 8. Em O Globo, 19/9/1997, citado em Pablo Semán, Bernardo Lewgoy e Silvina Merenson: «Intelectuales de masas y nación en Argentina y Brasil» em Alejandro Grimson (comp.): Pasiones nacionales. Política y cultura en Brasil y Argentina, Edhasa, Buenos Aires, 2007.
  • 9. Em O Globo, 11/8/2010.
  • 10. www.eagora.org.br/.../reflexoes-de-um-presidente-acidental.
  • 11. Em Consuelo Dieguez: «O formulador emotivo» em Piauí No 30, 3/2009, http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao_30/artigo_914/O_formulador_emotivo.aspx.
  • 12. Os donos do poder [1958], Globo, Rio de Janeiro, 1987.
  • 13. Citado em Roberto Schwarz: Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, Duas Cidades, São Paulo, 1977.
  • 14. Não somos racistas, Nova Fronteira, São Paulo, 2006.
  • 15. Acantilado, Barcelona, 2002.
  • 16. Brasil, um país do futuro [1941], cit.
  • 17. Ob. cit.
  • 18. Ibíd.
  • 19. G. Freyre: ob. cit.
  • 20. Paz e guerra. Casa-Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, Editora 34, Rio de Janeiro, 1995.
  • 21. Ibíd.
  • 22. Ob. cit.
  • 23. Ibíd.
  • 24. Renato Ortiz: Cultura brasileira e identidade nacional, Brasiliense, São Paulo, 1985.
  • 25. Susana Torrado: Población y bienestar en la Argentina del primero al segundo centenario. Una historia social del siglo xx, Edhasa, Buenos Aires, 2007.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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